Vida de Santa Cecília - Legenda Aurea

O nome Cecília vem de coelilília, "lírio do Céu", ou de caecís via, "caminho dos cegos", ou de coelo lya, "ligada ao Céu", ou de caecítate carens, "sem cegueira", ou ainda de coelo, "Céu", e leos, "povo" Ela foi "lírio celeste" pelo pudor da virgindade, ou é chamada lírio porque tinha a brancura da pureza, o verdor da consciência e o odor da boa reputação. Foi "caminho dos cegos" pelos exemplos que deu. Foi "ligada ao Céu" por sua assídua contemplação do Céu. Cecília quer dizer "Céu", porque, segundo Isidoro, os filósofos disseram que o Céu é movediço, esférico e ardente, e ela foi movediça pela aplicação no trabalho, esférica pela perseverança, ardente pela inflamada caridade. Foi "sem cegueira" pelo brilho de sua sabedoria, foi "Céu do povo" porque o povo olhava para ela para imitá-la, como um Céu espiritual do qual era o sol, a lua e as estrelas, isto é, a sabedoria perspicaz, a fé magnânima e as virtudes variadas.
Cecília, virgem notável, de nobre família romana, educada desde o berço na fé em Cristo, sempre levava no peito o Evangelho de Cristo e dia e noite, incessantemente, conversava com Deus, rezava e pedia ao Senhor que lhe conservasse a virgindade. Ela foi prometida em casamento a um jovem chamado Valeriano, e no dia das núpcias, debaixo das vestes bordadas a ouro, usava sobre a carne um cilício. Enquanto o coro de músicos cantava, Cecília cantava também em seu coração, dizendo: "Que meu coração e meu corpo, Senhor, permaneçam imaculados, que eu não experimente nenhuma perturbação". Ela passou dois ou três dias na prece e no jejum pedindo ao Senhor que não acontecesse o que temia.
Chegou enfim a noite em que se retirou com seu esposo para a intimidade do aposento nupcial, e disse-lhe: "Ó meiguíssimo e amadíssimo jovem, tenho um segredo para revelar se você quiser jurar que o guardará rigorosamente". Valeriano jurou que nenhuma situação, que nenhuma razão, o faria revelá-lo. Então ela disse: "Tenho como amante um anjo de Deus que cuida do meu corpo com extrema solicitude. Se ele perceber que você me macula com seu amor, ele o atingirá imediatamente e você perderá a flor de sua encantadora juventude. Se, por outro lado, ele vir que você me ama de um amor sincero, ele o amará como me ama e lhe mostrará sua glória". Então Valeriano, por vontade de Deus, respondeu: "Se quer que eu creia, faça-me ver esse anjo e me certificar de que realmente é um anjo de Deus, e farei aquilo a que me exorta, mas se você ama outro homem atingirei a ambos com minha espada". Cecília disse: "Se você quer acreditar no verdadeiro Deus e prometer se batizar, poderá vê-lo. Saia da cidade pela via Ápia, ande três milhas e diga aos pobres que lá encontrar:
'Cecília me envia a vocês para que me façam ver o velho Santo Urbano, pois tenho uma mensagem secreta a transmitir-lhe'. Quando estiver diante dele, relate todas as minhas palavras e depois que ele o tiver purificado, retorne e verá o anjo". Valeriano pôs-se a caminho e, seguindo as informações que recebera, encontrou o bispo Santo Urbano escondido no meio das sepulturas dos mártires. Contou-lhe tudo o que Cecília dissera, e ele estendendo as mãos para o Céu exclamou com os olhos cheios de lágrimas: "Senhor Jesus Cristo, autor das castas resoluções, receba os frutos das sementes que plantou em Cecília. Senhor Jesus Cristo, bom pastor, sua escrava Cecília serviu-o como uma eloquente abelha 1, pois domesticou este esposo que ela recebeu como um leão feroz e fez dele o mais dócil cordeiro". E eis que de repente apareceu um velho de vestes brancas como a neve tendo na mão um livro escrito em letras de ouro. Vendo-o, Valeriano, tomado de terror, caiu como morto. O velho ergueu-o e ele leu estas palavras: "Um Deus, uma fé, um batismo; um só Deus, pai de todas as coisas, que está acima de todos nós e acima de tudo e em todos nós". Quando Valeriano acabou de ler, o velho perguntou: "Você acredita nisso ou ainda duvida?" Ele exclamou: "Não há sob o Céu outra verdade mais crível" No mesmo momento o velho desapareceu, e Valeriano recebeu o batismo das mãos de Santo Urbano. Ao voltar, encontrou Cecília no quarto conversando com o anjo, que tinha na mão duas coroas trançadas com rosas e lírios. Deu uma a Cecília e outra a Valeriano, dizendo: "Guardem estas coroas com um coração sem mácula e um corpo puro, pois foi do Paraíso de Deus que as trouxe para vocês. Elas jamais fenecerão nem perderão seu perfume, serão visíveis apenas àqueles que amarem a castidade. Quanto a você, Valeriano, por ter seguido um conselho tão útil, peça o que quiser e obterá". Valeriano: "Nada me é mais doce nesta vida do que a afeição de meu único irmão. Peço então que ele conheça a verdade comigo". O anjo: "Seu pedido agrada ao Senhor, e ambos alcançarão juntos a palma do martírio". Pouco depois entrou Tibúrcio, irmão de Valeriano, que tendo sentido um extraordinário aroma de rosas disse: "Estou surpreso de que nesta época se possa respirar este aroma de rosas e de lírios. Mesmo que tivesse essas flores em minhas mãos, elas não exalariam um perfume mais suave. Confesso que me sinto outro, subitamente mudado". Valeriano: "Temos coroas de flores que seus olhos não podem ver, que reúnem o brilho da púrpura à brancura da neve, e da mesma maneira que a meu pedido você pôde sentir o aroma, se acreditar poderá vê-las". Tibúrcio: "Será que sonho ao ouvi-lo, ou você diz a verdade, Valeriano?". Valeriano: "Até aqui vivemos apenas em sonho, mas agora estamos na verdade". Tibúrcio continuou: "Onde você aprendeu isso?". Valeriano: "O anjo do Sen hor me instruiu, e você mesmo poderá vê-lo quando estiver purificado e houver renunciado a todos os ídolos". Esse milagre das coroas de rosas é atestado por Ambrósio, que diz no pref ácio: Santa Cecília foi tão repleta do dom celeste que recebeu a palma do martírio, que execrou o mundo e o casamento, que obteve a conversão de seu esposo Valeriano e de Tibúrcio, que pela mão de um anjo você a coroou, Senhor, com flores odoríferas. Esta virgem conduziu aqueles homens à glória e o mundo conheceu quanto vale a devoção à castidade.
Cecília provou a Tibúrcio que todos os ídolos são insensíveis e mudos, e ele comentou: "Quem não crê nessas coisas é um animal". Cecília abraçou seu cunhado e disse: "Hoje reconheço-o como meu irmão, e da mesma maneira que o amor de Deus fez de seu irmão meu esposo, o desprezo que você tem pelos ídolos também faz de você meu irmão. Vá, portanto, com seu irmão receber a purificação e ver os rostos angélicos". Tibúrcio disse a seu irmão: "Eu peço, irmão, diga-me a quem você vai me levar". Valeriano: "Ao bispo Urbano". Tibúrcio: "Não foi esse Urbano que foi condenado e continua foragido? Se for descoberto será entregue às chamas, e nós com ele. Assim, por ter buscado uma divindade que se oculta nos Céus, incorreremos na Terra no furor que nos destruirá". Cecília: "Se esta vida fosse a única, seria justo temer perdê-la, mas há uma outra, melhor, que jamais é perdida, e que o Filho de Deus nos fez conhecer. Todas as coisas foram feitas pelo Filho gerado do Pai, tudo o que é criado foi o Espírito que provém do Pai que animou. Foi esse Filho de Deus que, vindo ao mundo, demonstrou por palavras e milagres que há outra vida". Tibúrcio respondeu: "Não há dúvida de que você afirmou existir um único Deus, como agora diz que há três?" Cecília respondeu: "Da mesma maneira que na sabedoria de um homem encontram-se três faculdades, o gênio, a memória e a inteligência, na essência única da divindade pode-se encontrar três pessoas". Então ela falou da vinda do Filho de Deus, de sua Paixão, mostrou as muitas razões do acontecido:
Se o Filho de Deus foi preso, foi para libertar o gênero humano dos grilhões do pecado. Aquele que é abençoado foi amaldiçoado a fim de que o homem amaldiçoado fosse abençoado. Ele aceitou ser iludido a fim de que o homem fosse livrado da ilusão do demônio; recebeu na cabeça uma coroa de espinhos para nos tirar da pena capital; aceitou o fel amargo para devolver ao homem o gosto doce; foi despido para cobrir a nudez de nossos primeiros pais; foi suspenso na árvore da cruz para reparar a prevaricação da árvore do pecado.
Então Tibúrcio disse ao irmão: "Tenha piedade de mim, leve-me ao homem de Deus para eu receber a purificação". Ele foi levado, purificado, e a partir daquele momento via frequentemente os anjos e obtinha imediatamente tudo o que pedia. Valeriano e Tibúrcio distribuíam muitas esmolas, sepultavam os corpos dos santos que o prefeito Almáquio mandava matar. Almáquio chamou-os e perguntou por que sepultavam os condenados como criminosos. Tibúrcio: "Tomara que fôssemos escravos desses que você chama de condenados! Eles desprezaram o que parece ser e não é nada, encontraram o que parece não ser e é". O prefeito: "Que coisa é essa?" Tibúrcio: "O que parece existir e não existe é tudo o que está neste mundo, que conduz o homem ao que não existe. O que não parece existir e existe é a vida dos justos e o castigo dos culpados". O prefeito:
''Acho que você não fala com a mente sã". Então mandou Valeriano aproximar-se e disse: "Como a cabeça de seu irmão não está boa, pelo menos você poderá dar uma resposta sensata. É claro que vocês estão errados, pois rejeitam a alegria e são inimigos das coisas prazerosas". Valeriano disse então que vira no inverno "homens ociosos e debochados zombando dos trabalhadores ocupados nas tarefas agrícolas, mas, no verão, quando chegou o momento de colher os gloriosos frutos de seus trabalhos, os considerados insensatos ficaram alegres, enquanto os imprudentes começaram a chorar. Da mesma forma, suportamos agora a ignomínia e o labor, para mais tarde receber a glória e a recompensa eternas. Vocês, que gozam agora de uma alegria transitória, no futuro encontrarão apenas luto eterno". O prefeito: "Portanto nós e nossos príncipes invencíveis teremos luto eterno e vocês, pessoas vis, possuirão alegria sem fim?" Valeriano: "Vocês não são príncipes, e sim pobres homens nascidos em nossa época e que logo morrerão e devolverão tudo a Deus". Disse o prefeito: "Por que perder tempo com tergiversações? Ofereçam libações aos deuses e saiam ilesos". Os santos replicaram: "Todos os dias oferecemos sacrifício ao verdadeiro Deus". O prefeito: "Qual é o nome dele?" Valeriano: "Jamais poderá descobrir, mesmo que tivesse asas para voar". O prefeito perguntou: "Júpiter não é o nome de um deus?" Valeriano: "É o nome de um homicida e de um estuprador". Almáquio: "Então, todo o universo está errado e apenas você e seu irmão conhecem o verdadeiro Deus?" Valeriano res pondeu: "Não somos os únicos, uma inumerável multidão recebeu a santa doutrina". Os santos foram entregues à guarda de Máximo, que lhes disse: "Ó nobre flor da juventude, ó irmãos unidos por tanto afeto, por que correm para a morte como se fossem a uma festa?" Valeriano disse que se ele prometesse crer, ele próprio veria a glória deles depois da morte. Máximo: "Que eu seja consumido pelo raio se não confessar esse Deus único que vocês adoram, caso aconteça o que dizem!" Então Máximo, toda a sua família e todos os carrascos converteram-se e receberam o batismo de Urbano, que foi encontrá-los em segredo.
Quando a aurora anunciou o fim da noite, Cecília exclamou:
"Vamos, soldados de Cristo, rejeitem as obras das trevas e peguem as armas da luz". Os santos foram então levados a quatro milhas fora da cidade, até a estátua de Júpiter, e como não quiseram oferecer sacrifício a ela, foram decapitados. Máximo assegurou sob juramento que, no momento do martírio, viu anjos resplandecentes levando para o Céu as almas deles como se fossem virgens saindo do quarto nupcial. Ao saber que Máximo se tornara cristão, Almáquio mandou espancá-lo com chicotes de pontas de chumbo até ele entregar o espírito. Santa Cecília sepultou seu corpo ao lado do de Valeriano e de Tibúrcio. Os bens destes dois foram confiscados por Almáquio, que convocou Cecília, como mulher de Valeriano, para imolar aos ídolos ou receber sentença de morte.
Como os guardas insistiam que obedecesse, e choravam muito por uma jovem tão bela e tão nobre entregar-se à morte, ela lhes disse: "Ó, bons jovens, isto não é perder a juventude, mas mudá-la, é dar lama para receber ouro, dar uma habitação vil para receber uma preciosa, dar um cantinho para receber um lugar amplo e luminoso. Se alguém quisesse dar ouro por cobre, vocês não correriam para lá? Ora, Deus recebe um e devolve cem. Vocês acreditam no que digo?" Eles: "Acreditamos que Cristo que possui tal escrava é o verdadeiro Deus". Chamaram o bispo Urbano e mais de quatrocentas pessoas foram batizadas. Então Almá quio convocou Santa Cecília e perguntou: "Qual é sua condição?" Ela: "Sou livre e nobre". Almáquio: "É a respeito da religião que pergunto". Cecília: "Sua pergunta não foi bem feita, exigia duas respostas". Almáquio: "De onde vem tanta presunção ao me responder?" Ela: "De uma consciência pura e de uma convicção sincera". Al máquio: "Você ignora o poder que tenho?" Ela: "Seu poder é o de um odre cheio de vento que uma agulha fura e cuja aparente rigidez cede". Almáquio: "Você começou ofendendo e continua ofendendo". Cecília respondeu: "Não se ofende quando não se usam palavras falsas. Demonstre que eu disse uma injúria, que afirmei uma falsidade, ou então reconheça que está enganado ao me caluniar, pois conhecemos o santo nome de Deus e não podemos renegá-lo. É melhor morrer para ser feliz do que viver para ser miserável". Almáquio: "Por que fala com tanto orgulho?" Ela: "Não é orgulho, mas firmeza". Almáquio: "Infeliz, você ignora que o poder de vida e de morte me foi confiado?" Ela: "Provo publicamente que você acabou de mentir, pois pode tirar a vida dos vivos, mas não dá-la aos mortos. Você é um ministro da morte, não da vida". Almáquio: "Desista já dessa loucura e ofereça sacrifício aos deuses". Cecília: "Não sei onde você perdeu o uso dos olhos, pois dos deuses de que fala vemos apenas pedras. Pegue-os com a mão, toque-os, e compreenda o que não pode ver com os olhos". Então Almáquio mandou levá-la de volta para casa, ser colocada por toda a noite em um banho fervente até ser queimada. Ela ficou ali como num lugar fresco, sem sequer exalar o menor suor. Quando Almáquio soube disso, mandou decapitá-la no banho, mas o carrasco golpeou seu pescoço três vezes sem conseguir cortar a cabeça. Como a lei proibia golpear quatro vezes a vítima, o carrasco deixou-a ensanguentada, semi morta. Durante os três dias em que sobreviveu, deu tudo o que possuía aos pobres e recomendou ao bispo Urbano todos os que convertera:
"Pedi ao Senhor esses três dias para recomendar à sua beatitude todas essas pessoas e para que consagre minha casa como igreja". Santo Urbano sepultou seu corpo junto com os dos bispos e consagrou sua casa, que se tornou uma igreja, como ela pedira. Ela foi martirizada por volta do ano do Senhor de 223, no tempo do imperador Alexandre. No entanto, diz-se em outro lugar que ela sofreu na época de Marco Aurélio, que reinou por volta do ano do Senhor de 220.
1. Uma tradição narrada por Cícero e Plínio afirmava que o dom oratório de Platão tinha sido pressagiado por abelhas pousadas sobre sua boca. Um cronista medieval, Raul Glaber, falou de um camponês ignorante que se tornou muito eloquente depois que abelhas entraram em seu corpo.